Quem sou?

Sou criança, sou adolescente, sou jovem e também um adulto que carrega na história a capacidade de ainda ser um idoso.

Mas quem de verdade sou eu? A mistura perfeita de todos os momentos de minha vida ou a composição adequada para a idade que hoje tenho?

Ainda lembro tão bem da minha infância, tempo de dificuldades e carências, família numerosa, filhos de todas as idades, não tínhamos o conforto que hoje tenho, não podíamos comer o que hoje posso comer, não deitávamos em camas tão confortáveis quanto a que hoje posso me deitar. Às vezes os olhos precisavam ser desviados de um foco que apenas representava o desejo de experimentar “aquela delicia” que estava exposta na vitrine de uma quitanda qualquer…

Eu era uma criança, um serzinho que não entendia o que acontecia, eu apenas sentia desejo, desejo de ter um brinquedo, o desejo de poder calçar meus pés com um novo sapatinho, o desejo de me vestir tão “bem” quanto as outras crianças que viviam perto de mim.

Mas não era possível, era preciso entender mesmo sem compreender o porquê, apenas aceitar, aceitar a situação que vivíamos.

Não havia fome em nossa casa, não, isto não! Não estávamos expostos às mudanças climáticas como tantas outras crianças que víamos perambulando pelas ruas sem rumo e sem destino, tínhamos “nossa casa”, claro, casa pequena, mas estávamos abrigados… O tempo passou… Crescíamos juntos, todos nós, a escola nos ajudava a entender melhor o mundo e nossos pais nos educava da melhor forma que podiam, eu entendo isso tão bem hoje…

A adolescência chegou, novos rumos, novos caminhos, ideias e ideais agora se formavam com mais clareza, começávamos a perceber o que era o mundo e que neste lugar éramos obrigados a caminhar sempre em frente com sabedoria e discernimento suficiente para nos tornarmos adultos responsáveis. O tempo passou…

Sem que eu pudesse perceber já me tornava um adulto, um ser agora responsável pelos seus atos e atitudes, um ser que precisava ser responsável pelos seus próprios sentimentos.

Os desentendimentos começavam a surgir, as discórdias tomavam conta da alegria da infância vivida e tudo se tornava “diferente” apenas isto, diferente.

Cada um seguiu seu caminho, cada qual com suas escolhas e hoje estou aqui, 89 anos, sentado na varanda de minha casa “olhando o tempo passar”.

Mas quem sou eu? Em quem se tornou aquela criança descalça que fazia barquinhos de papel para brincar na calçada quando chovia e podia ver na imaginação aquela “embarcação” se perder na enxurrara que a levava tão habilmente  para todos os lugares e ao mesmo tempo para lugar nenhum?…Quem hoje sou?

Eu posso dizer que venci, estudei, me tornei um homem de respeito, casei-me com aquela que escolhi para compartilhar comigo a vida que eu idealizei e que junto dela se tornou possível.  Tive meus filhos os eduquei, consegui “bancar” cada um deles como pediu seus desejos, como sonharam seus sonhos,  tentei, tentei “fazer diferente”, tentei  creio que como qualquer pai da minha geração dar a eles o que “eu não tive”, mas tendo o cuidado de preservar  o que sempre foi de melhor na minha infância, na minha adolescência e na minha idade adulta, a dignidade de aceitação e a capacidade de querer sempre ser melhor a cada dia, lições que aprendi, aprendi naquela época “a duras penas” porque hoje eu sei que poucos suportariam ver e não poder ter.

E então a velhice chegou, os anos começam a pesar, meus castelos devagar se ruíram, minha vida também se transformou como é a própria lei da vida. Meus filhos agora são adultos, meu “ninho” está vazio. Os meus sonhos agora outra vez são só meus, eu outra vez preciso entender, eu preciso, entender,  entender sem mesmo querer, entender que cada um segue seu rumo nesta “embarcação”, como aquele barquinho que seguia para todos os lugares e para lugar nenhum.

Quando me deparo comigo mesmo e me faço esta pergunta tenho milhões de respostas prontas para saciar meu ego, respostas como:

“Temos o hoje para sermos o que queremos ser”

“O ontem e o amanhã não existem, faça o que tiver que ser feito hoje”.

“A vida é um presente, viva o presente com a dádiva de um presente”.

Mas, nem sempre foi assim, ontem mesmo eu fazia “previsões” para o futuro, tentava ser comedido nas despesas, tentando ser prudente nas escolhas, tentando ser certeiro nos alvos da vida preservando a integridade da família que construí e que me sentia responsável pela educação e sustento como provedor de um lar.

Apoiava-me nas lições do passado tentando fazer melhor no presente e ainda melhor no futuro, mas, mal sabia eu que eu mesmo assim eu vivia cada dia, cada dia um dia, não tinha como atropelar as etapas da vida porque a própria vida me mostrava que não era possível, que de repente eu não podia “encaminhar minhas crias” direto para a faculdade sem antes ter vivido com eles a infância, a adolescência e a idade adulta, não, não valemos de nada quando é a vida quem dita as normas e é a vida que da ao tempo o tempo que temos para caminhar.

Hoje estou aqui, orgulhoso de quem me tornei e ouvindo às vezes a música de Fábio Junior,

Fábios:

“Sou contraditório, sou imenso

Tenho multidões dentro de mim

Sou diversos Fábios pra você

A cada dia mais toda noite o mesmo

Coração e assim…

Vou simplificando a minha vida e sua porque viver é ver da rua a luz de casa

E da nossa casa ver a luz da lua”

Eu consigo entender que também sou assim, fui, sou e continuarei ser contraditório, imenso, que hoje tenho de verdade multidões dentro de mim que fui, sou e sempre serei diversos eu a cada dia mais que toda as noite ao me deitar terei a certeza de que sempre tenho o mesmo coração, um coração que bate, que pulsa pela vida saciando viver ainda mais, querendo simplificar minha jornada porque a felicidade é sim de verdade ver da rua a luz da minha casa e da minha casa ver brilhar a luz da lua.

Quero preservar a criança que tenho dentro de mim, quero acariciar esta criança que alicerçou e que aprendeu se tornar um adolescente “rebelde” cheio de sonhos e fantasias que ao se tornando jovem começou a enxergar as possibilidades de um novo caminho, um caminho que poderia docimente acolher o adulto que daí a pouco precisava chegar, chegar e desbravar aquela estrada que se traçava dia após dia.

Eu quero afagar este adulto que nas possibilidades viu a oportunidade que poder dar a paz e o alento para aquele idoso que um dia teria chance de nesta mesma estrada poder descansar.

Sou sim, uma criança, um adolescente, um jovem, um adulto, um ser que misturados se tornou o idoso que hoje sou.

Pense nisso.

Gilwanya Ferreira

CRP 04/42417.

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